Os Peregrinos

O caminho não é novo... O novo está em nós, no nosso jeito de caminhar!

Descansar??? Pra quê???

E no sétimo dia (Deus) descansou.” (Gn 2,2)

Eis uma pergunta que não quer calar: Deus descansa? Mas que irresponsabilidade é essa? Deixar a gente aqui, sem mais nem menos, vulnerável às intempéries do mundo?

Ele nos colocou aqui, foi descansar e agora a gente que se vire???

Bem... Algumas interpretações do texto chegam inevitavelmente a esta conclusão. Mas são interpretações descontextualizadas, que não levam em conta nem a época em que o texto foi escrito, quanto mais o que estava acontecendo.

Estamos lembrados??? A época é de Exílio! Os judeus estão na Babilônia. Bom... Nem todos os judeus! Só a corte judaica é que foi deportada, na verdade...

A elite judaica estava habituada à vida sedentária da corte. Na Babilônia, tinha que trabalhar de sol a sol.

Descanso? Dia de folga? Pra quê??? Na Babilônia, quem comandava o calendário eram os astros (particularmente a Lua). Então os descansos e dias de festa eram raros, se comparados ao descanso semanal dos judeus.

O calendário judaico era organizado por semanas de 7 dias, assim como o nosso, de hoje em dia. Mas o dia de descanso era o sábado.

Então o autor relata que Deus conclui a obra em 6 dias e descansa no sétimo, reforçando que o descanso sabático é querido por Javé.

Afinal, o trabalho também não pode ser um ídolo. O lucro a qualquer preço e o consumismo desenfreado coisificam a pessoa.

É preciso redescobrir que o trabalho só dignifica o homem (e a mulher?) se, em nossa escala de valores, o trabalho estiver a serviço da humanidade, e não o contrário.

Mas o autor parece querer dizer mais! Vejamos...

Outro motivo para não parar de trabalhar. Dizem os mais velhos que “mente vazia é oficina do diabo.” Os babilônios sabiam disso muito bem. Escravo parado é mente trabalhando; mente trabalhando é revolta organizada, na certa.

O sétimo dia encerra uma obra. São 6 dias de organização do caos; e a conseqüência disso é a Vida.

Um calendário diferente implica uma organização diferente da nossa rotina, do dia-a-dia. Um dia de descanso por semana é tempo mais que suficiente para organizar a resistência contra a opressão.

Além disso, ao dizer que o sabbath é fruto da Vontade de Javé, o autor excita a memória dos(as) leitores(as).

O dia de descanso é tempo de lembrar, ao redor da fogueira, os tempos felizes, em que Javé estava ao lado do povo. É tempo de rever nossa conduta, perceber que a condição atual é fruto de nossos erros, e que Deus continua ali, ao nosso lado, motivando-nos a levantar e nos voltarmos para Ele.

O ápice do primeiro capítulo, portanto, é o sétimo dia. Inclusive, se lermos atentamente Gn 2,2-4, veremos que não houve uma tarde e uma manhã (cf. Gn 1,5.8.13.19.23.31). Ou seja... O sétimo dia dura até os dias de hoje!

O que isso quer dizer? Simples... O número da perfeição é o 7, mas a obra foi concluída em 6 dias. Mais ainda... Em 6 dias, Deus realizou 8 obras (veja que tanto o terceiro quanto o sexto dia encerram duas obras cada um).

Com isso, o autor reforça que a criação está pronta, mas não é perfeita. É no sétimo dia que ela vai atingir a perfeição. E quem recebe o “chapeuzinho de Mestre-de-Obras” no sétimo dia?

E lá vamos nós, aos trancos e barrancos! Tentando aperfeiçoar a obra, mas cometendo um deslize aqui, outro ali... As ordens do Projetista são claras, mas o Mestre-de-Obras comete 5 errinhos básicos e, em virtude deles, estamos até agora tentando trazer a obra de volta à planta original.

E olha que já recebemos até a visita de um dos Idealizadores deste Projeto...

Quais são estes 5 erros??? É o que veremos, na seqüência!

Até lá!!!

Já deve ter ficado claro o perigo da idolatria, pelo que dissemos até aqui.

Se perguntarmos a qualquer cristão, ou cristã, o que significa a idolatria, eles não vão ter nada agradável a dizer sobre ela.

Entretanto, não é fácil identificá-la! Isso porque ela representa nossos projetos, normalmente de realização pessoal e, por isso mesmo, opostos ao Plano de Deus.

Inconscientemente sabotamos nosso ideal de fidelidade a Deus, por ser natural querermos que sua Vontade nos seja favorável, serva de nossos propósitos.

É por isso que o primeiro relato da criação segue desmistificando os falsos ídolos. Depois do Sol (Marduc) e da Lua (Ishtar -- radical que, na verdade, dá origem à palavra “estrela”), é a vez dos bezerros de ouro, bodes e cabras sagrados etc:

Deus disse: ‘Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem acima da terra, sob o firmamento do céu’, e assim se fez... E Deus viu que isso era bom. Deus os abençoou e disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos...’ Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia.” (Gn 1,20-23)

Ainda não se fala de nenhum animal terrestre, mas notemos que pela primeira vez Deus bendiz, abençoa sua criação.

A bênção implica a multiplicação da Vida. Fica evidente que não se trata de uma exclusividade, de um “tratamento VIP”, destinado à humanidade.

E por falar em humanidade...

Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie’, e assim se fez. Deus fez as feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom.” (Gn 1,24-25)

O autor repete, no v. 25, o que já havia afirmado no v.24, enfatizando que não só a humanidade, mas todos os animais terrestres foram feitos no sexto dia.

Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança...’ ” (Gn 1,26a)

Quem acompanhou as reflexões até aqui, facilmente consegue ver que, mesmo sob a aparência divina (Imagem e Semelhança), toda a humanidade, incluindo o rei babilônio (auto-denominado “filho do deus Marduc”), não passava da condição de criatura. Mas o texto segue...

‘... e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra.’ ” (Gn 1,26b)

E é aí que reside o maior dos males: o homem recebe uma responsabilidade (cuidar do planeta), mas entende isso como um privilégio, do qual pode tirar proveito.

Dito de outra forma: Recebemos o papel de “pastores”, mas resolvemos agir como “lobos”.

Com a maior das responsabilidades na mão, a humanidade ainda encontra tempo para se nomear medida de todas as coisas.

Deus é destronado para a ascensão do homem, do antropos. Pronto... Está instaurado o ANTROPOCENTRISMO.

É em função disso que a relação com a terra (agora já não é mais “Mãe” e escreve-se com minúscula) deixa de ter benefícios mútuos e passa a ser de exploração.

Nisso têm culpa o homem e a mulher, como faz questão de afirmar o v. 27, quando destaca a sua igualdade de condição. Mas o antropocentrismo é tão antropocêntrico que subordina até mesmo a mulher.

O autor, talvez sem perceber o quanto será mal interpretado, segue o texto (v. 28), repetindo a expressão “dominar”, responsabilizando agora também a mulher e acrescentando a bênção divina.

Em sua “inocência”, relata que no princípio não havia carnívoros (vv. 29 e 30). Todos, humanos e animais, eram vegetarianos, pois não é desejo de Deus o derramamento de sangue.

Isso porque o sangue está intimamente ligado à sobrevivência e à manutenção da Vida.

E Deus viu que toda a sua obra é boa. Aliás... Boa não... Muito boa!!! Só que a sua “zeladora”, a humanidade... bem... sobre isso continuamos outra hora!

Até lá!!!

ECOLOGIA SIM; IDOLATRIA NÃO!!!

Até aqui já dissemos o que entendemos por: Bíblia, Juventude e Ecologia.

Além disso, vimos que Deus vence a Morte no terceiro dia; e isso logo nos primeiros versículos da Bíblia.

É Deus que transforma o caos em ordem, torna o deserto verde, submete as trevas à luz e impõe limites às águas agitadas.

Vencida a Morte, estava preparado o terreno para que a Vida florescesse! Mas aí...

Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra’, e assim se fez. Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro como poder da noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, para comandar o dia e a noite, para separar a luz e as trevas, e Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.” (Gn 1,14-19)

Estamos tão acostumados ao texto que nada percebemos de estranho neste trecho... não é!?! Mas há algo estranho sim... Luz e trevas já não estavam separados por Deus?

Percebam com que insistência o narrador explica a função dos luzeiros. Bastava apenas dizer que o maior rege o dia e o menor rege a noite. Mas ele repete, repete, repete... E não diz o nome dos luzeiros. Não é estranho???

Talvez sim... Mas se nos lembrarmos que o texto foi escrito numa situação de cativeiro (Exílio na Babilônia), as coisas começam a ficar mais claras.

Entre o povo, o sentimento de derrota só não superava o de vergonha. Javé, que até então havia ajudado os judeus a vencer os outros povos, não fez nada contra os babilônios, que dominaram Judá facilmente. A conclusão só podia ser uma: o deus babilônio era mais forte que Javé.

A Babilônia não tinha apenas um deus. O mais poderoso entre eles era Marduc: nome dado pelos babilônios ao Sol. Ishtar (cujo radical, na verdade, dá origem à palavra "estrela") era o nome dado à Lua. Portanto, pronunciar os nomes dos luzeiros era dar força aos deuses babilônios.

Na mitologia babilônica, Marduc vence o caos, igualmente numa cena onde a água é abundante e é sinal de Morte. É que a Babilônia era cercada por dois dos 4 grandes rios conhecidos da época: Tigre e Eufrates, cujas cheias irregulares eram sinal de preocupação constante.

É importante também dizer que os babilônios inventaram o horóscopo. A Natureza era uma confraria de deuses, conspirando contra ou a favor da sorte do povo. Tudo dependeria dos ânimos dos astros.

Tudo dependeria também do filho de Marduc. E esse era ninguém menos do que o Rei da Babilônia: o legítimo portador da vontade de deus.

O autor do primeiro relato de Gênesis, portanto, quer fortalecer a fé e a esperança do povo, mostrando que os astros não são deuses, mas criaturas do Único Deus: Javé.

Não cabe ao relato de Gênesis explicar por que Javé permitiu o Exílio. Isso farão os círculos proféticos, tentando provar que a culpa era proveniente dos pecados do povo.

O que lhe cabe é fazer uma nova Teologia da Criação, reforçando a condição de criatura, conferida a Marduc. Para reforçar isso, o texto mostra que a luz é criada bem antes do astro-rei (4 dias). E se o Sol traz a luz, é porque esta é a missão que Javé lhe confiou. O mesmo acontecendo com a Lua (Ishtar), em relação à noite.

O resultado dessa nova Teologia é que somos novamente livres. Nosso destino não está mais nas mãos de reis, ou astros, ou de qualquer outra ideologia dominante.

Hoje muitos ecólogos querem estabelecer uma relação de verdadeira adoração à Natureza. Novamente se dá força à astrologia, ao poder místico das pedras, à função terapêutica das plantas... Quando o bem-estar que sentem, na verdade, é fruto de uma pequena sintonia com parte do meio ambiente. Nada mais!!!

Sintonia esta que perdemos há muito tempo, conforme veremos no próximo encontro.

Mas convém que se diga, para encerrar este tema, que a verdadeira ecofilia não transforma as criaturas em mais do que elas são. Não preciso dar status de deus ou deusa ao chão que piso, para entrar em sintonia com a Mãe-Terra.

Agindo com arrogância e pretensa superioridade (veremos mais sobre isso quando falarmos em Imagem e Semelhança), a humanidade vem agredindo sistematicamente a Natureza. Isso está matando nosso planeta.

Mas agimos com absoluta leviandade quando trocamos a nossa liberdade de filhos e filhas de Deus por um destino que nos isenta de qualquer responsabilidade diante dos fatos.

Só quando assumirmos que somos tão criaturas quanto o sol ou a lua, e que fazemos parte de um todo que é o cosmo, restabeleceremos de forma saudável e harmoniosa o equilíbrio do Universo.